sábado, julho 3

Passos

O relógio marca mesma hora e minutos. O contador bate a ponta dos dedos na mesa, passa a mão nos vazios cabelos e mostra toda sua impaciência diante da caneta e dos papéis. Toda essa insatisfação vem da ausência de fantasias, que hoje a sua mente foi incapaz de fabricar. Mesmo com doses reforçadas de cafeína, ele não saiu do rabisco.

Em sua consciência ele quer escrever sobre caminhos; passos a dar em longos e diversos trajetos que a existência humana permitir. Mas como fazer isso sem a colaboração da peça principal que sempre o levou à maestria... Onde está sua inconsciência, companheira de madrugadas sem fim?

O contador vê então pela porta uma jovem silhueta de pele branca e cabelos negros, que prende toda a sua atenção no olhar. Ele observa atentamente, curioso, cada passo que é dado pelo quarto sujo e mal iluminado. A imagem e sensação de asco do ambiente, não conseguem ofuscar a nítida cor daquela carne que parece intocável.

Esse objeto de desejo vai mostrando, à medida que explora o lugar, sua infância debaixo de chuva, em alguma pensão do subúrbio da cidade. A adolescência que arrancava o juízo dos rapazes e a consciência dos mais velhos, que no início a assustava, mas com o tempo passou a dar-lhe brilho nos olhos e prazer em brincar.

O tempo foi passando e a brincadeira deixou de fazer sentido. Até que os seus pés encontraram outros pés e deixaram de ser só caminho, virou mãos e coração...

Porém como asas desenhadas, seus passos levaram-na para longe, em um lugar chamado Recomeçar. Ali, ela entrou e deixou para trás todas as fotografias, porque não queria sombras em seu caminho.

Desse modo, parou diante do contador e com os olhos mostrou todo o seu desejo a ser escrito. Assim, o contador de histórias pôs-se a escrever, fixado naquele olhar e no fundo temendo apaixonar-se por sua imaginação.